Redação Somos Todos Migrantes


A travessia no Mediterrâneo contada em "Barulho d´água"


PASCOM MATRIZ DE SANTO ANDRÉ - SP
POR ROSINHA MARTINS
DE SANTO ANDRÉ - SP

A peça Barulho d'água realiza a sua segunda temporada, no Brasil, com o intuito de fazer chegar aos ouvidos e ao coração do espectador o grito de milhares de imigrantes que se veem obrigados a fazer uma travessia marcada pelo perigo do deserto, dos campos de tortura na Líbia e do mar mediterrâneo onde multidões de homens, mulheres e crianças terminam a sua jornada.

Criada em 2009 e baseada no texto original do dramaturgo Marco Martinelli, Barulho d'água, ganha ainda mais expressão com a versão brasileira da diretora Carina Casuscelli que traz para o palco, para interpretar a história de pessoas entrevistadas por Martinelli na ilha de Lampedusa, os atores Alexande Rodrigues, do filme Cidade de Deus e Amaury Filho de Reis, ator cabo-verdiano que vive no Brasil.

Outro personagem marcante na peça, interpretado pelo ator Márcio Louzada, é o general responsável pelas estatísticas da imigração e representante da comunidade europeia com sua 'política do acolhimento'.

Os atores falaram com a imprensa scalabriniana sobre o que significa para eles contar ao público brasileiro esta história de vidas humanas feridas em sua dignidade.

"Usar a arte para informar e transformar", diz o ator de "Cidade de Deus"

Alexandre Rodrigues, natural de Nova Iguaçu, baixada fluminense, falou da sua atuação no filme 'Cidade de Deus', que mudou o paradigma do cinema brasileiro ao ser o único até agora a receber quatro indicações ao Oscar, nas categorias de melhor diretor, melhor roteiro adaptado, melhor edição e melhor fotografia. "Na época como eu era um ator muito jovem, Cidade de Deus foi meu primeiro trabalho profissional, eu não tinha noção de que havia feito parte de uma obra prima, como todos falam. Demorou muitos anos para a ficha cair. Temos este filme como um divisor de águas do cinema nacional e para mim fazer parte dessa mudança no cenário cinematográfico nacional foi muito bom", relata o ator.

Rodrigues falou, também, sobre a responsabilidade de representar a história vivida por milhares de seres humanos na travessia do Mediterrâneo, principalmente "no momento crítico em que vive o país, no qual, permanecer no palco se torna sinal de resistência". Estamos na segunda temporada desta peça e é muito importante levar essa informação para o público em geral, sobre a qual as pessoas quase não têm acesso. Costumo dizer que, por mais que se tenha acesso à internet 24 por dia, certas informações ficam perdidas. Portanto, penso que é crucial, superimportante continuarmos falando sobre o tema da travessia no Mediterrâneo, porque todos nós somos filhos de alguém que buscou refúgio aqui. No Brasil não existem pessoas puras, somos todos misturados. Acho o espetáculo de uma pertinência gigante porque neste exato momento que estamos conversando, fazendo esta peça, representando essas pessoas, elas estão tentando fazer a travessia e, tentando, friso, porque muitos realmente não conseguem fazê-la. Para mim, toda vez que apresento esta peça, me sinto cansado. Cansa o espírito. Não é uma coisa que vamos fazer, acabou, passou. Não. É vivo, está acontecendo. Para mim, representar essas histórias, significa que o artista tem esse dever cívico, temos que usar a arte para levar à transformação, e levar informação também. Ouça.

"Tirar as ceras dos ouvidos para ouvir o clamor do outro"

A diretora do espetáculo, Carina Casuscelli, explica que a dramaturgia com o tema de imigrantes e refugiados começou há um tempo atrás, quando no período de 1999-2000, levaram para o palco a situação de bolivianos nas confecções de roupas em São Paulo.

"Barulho d'àgua" é um trabalho muito importante para dar luz à questão porque vemos as notícias todos os dias nos jornais, mas não prestamos atenção. O teatro é um meio para tocar, provocar, colocar o foco, abrir os ouvidos, porque ele é vivo, tirar as ceras dos nossos ouvidos que muitas vezes nos entopem com a vida cotidiana, com nossos problemas, nos fazendo esquecer dos nossos irmãos que estão aí. Mas, o que podemos fazer?"

Casuscelli destaca ainda, que "a dramaturgia do espetáculo pontua todas essas questões, trazidas na voz do autor do texto e que, na nossa opção de encenação, optamos para colocar vozes na carne dos nossos ancestrais: a carne negra. A gente sabe quanto isso pesa. Convidamos o Alexandre, que veio das favelas, trabalhei nas favelas e sei como as crianças crescem, como é importante dar voz, é um ator que se aproxima. A gente optou por fazer o espetáculo neste momento de crise. O espetáculo fala desde os refugiados até o que nós estamos vivendo. Mesmo sem verba, decidimos fazê-lo. Creio que as pessoas precisam ser atravessadas neste momento e é um trabalho que fazemos com amor. A arte toca, mesmo que você não queira ouvir ela está te atravessando".

Sobre a atuação das missionárias scalabrinianas, que atuam na proteção, acolhida, promoção e integração dos imigrantes e refugiados afirmou: "A missão de vocês é muito importante. Alguém tem que mexer, tem que provocar, tem que estar, é um trabalho grandioso."

Casuscelli está na Companhia de Teatro há 18 anos. É produtora teatral. Estudou moda para trabalhar como figurinista.

"Impactar o espectador"

Já o ator Márcio Louzada, representa um personagem sádico, cínico, fatalista, mas ao mesmo tempo, um general, com a missão de reunir e contar os corpos de imigrantes. "É trabalhoso poder contar essa história de uma maneira que consiga impactar quem está assistindo. Como ator podemos cair na armadilha de dramatizar tanto, mas temos que cuidar porque não é uma fábula, mas uma situação real, política, conflituosa. Nossa função é mostrar o que realmente está acontecendo", afirma.

Louzada comenta, também, sobre a sua narrativa na peça que, de maneira metafórica, atribui a culpa das mortes e desaparecimentos dos imigrantes aos animais marinhos, peixes, tubarões. "Os tubarões, os porcos do mar são os militares, os traficantes, que desde o deserto da Líbia torturam e abusam das pessoas em situação de refúgio. É uma referência aos seres humanos, com todas as nossas idiossincrasias, com qualidades, uns melhores outros piores, a ideia é mexer na ferida. Meu papel na peça é fazer estatística dos mortos. Ali, o imigrante morto é qualquer coisa, é número. O autor (Marco Martinelli) quis reduzir aos números e o tempo todo retorna aos números; a peça já começa comigo falando nos números. Ou, então a obediência, no caso da menina da Nigéria, que não tem outra escolha, a não ser seguir as ordens e ficar refém dos traficantes. A peça fala de prostituição, dos traficantes, tudo que acontece...são muitas camadas, os personagens, metáforas", enfatiza.

Márcio Louzada começou sua carreira artística no teatro amador no tablado no Rio de Janeiro, há 20 anos. Fez teatro na Federal do Rio e há três anos trabalha em São Paulo. Ouça um pouco do espetáculo.

Africanos de lá e cá em "Barulho d'água"

O cabo-verdiano, Luís Amaury Pereira dos Reis Santos, contracena com Alexandre Rodrigues em Barulho d'água e explica a razão do seu sobrenome artístico. "Filhos de Reis", é uma forma de resgatar a identidade, e manter viva a nossa história como povo africano. "Participar deste espetáculo é um pouco forte, às vezes a gente acaba levando para o âmbito pessoal porque sou um imigrante africano, embora tenha vindo em boas condições, mas meus tios passaram por esta experiência. Um tio meu foi para a Europa e não dava notícias, o que veio acontecer depois de ter se organizado. E como Cabo Verde é composto por dez ilhas, a gente ficava preocupado com a viagem dele".

Amary confessou gostar do Brasil e que veio para cá com um propósito, porém sente que na capital paulista falta um sentimento de vizinhança, muito comum no seu país. "Na minha cidade, Assomada, por exemplo, se alguém estiver fazendo algo errado, sabe quem é, ou se você estiver necessitado tem alguém pra te ajudar porque sabe que é o filho da Jaqueline, enquanto aqui é cada um por si, ao menos em São Paulo. Tenho RG brasileiro, porque nasci aqui, meus pais vieram pra cá para estudar e retornei aos seis meses para Cabo Verde, por isso acho que tenho uma missão neste lugar. Posso fazer algumas coisas aqui que os africanos não podem porque não tem nacionalidade e posso fazer algumas coisas que os brasileiros não podem porque não tem convivência africana. Sou muito grato por isso, mas, ao mesmo tempo, considero uma missão.

Amaury acredita que como africano pode colaborar com os afrodescendentes no Brasil, no que se refere ao seu lugar na sociedade. "Há uma carência em relação ao conhecimento das nossas raízes. Acho que posso contribuir por causa da bagagem que trago. Faço licenciatura em física, na minha sala não tem pessoas negras, e creio que é pelo fato de que elas não tiveram professores negros e por isso não se veem nesse lugar. Os africanos que vem aqui tem uma estima muito legal por terem referência em qualquer setor da sociedade africana. Pelo fato de não terem tido um presidente negro no Brasil, algumas pessoas não veem essa possibilidade, mas para quem viveu num país em que todas as posições sociais são ocupadas por pessoas negras, há uma diferença enorme. Depende como você se vê, o que você acredita que é pra você e se organiza e chega lá".

Barulho d´água foi apresentada no último domingo,11, no Centro Cultural Olido - Avenida São João - SP e a Companhia continuará a temporada.

Da redação da PASCOM Matriz Santo André - Santo André - SP

Entrevista e Imagens: Rosinha Martins